Gal 70

Porta-voz do tropicalismo exilado, Gal Costa reúne em seu álbum de 1970 gêneros musicais tão diversos quanto sua capacidade interpretativa. Coluna ainda recupera programa em que José Simão comenta o terceiro disco da baiana.

Vilmar Bittencourt 30/11/10 16:36 - Atualizado em 30/11/10 16:36

Com o grupo Som Imaginário e cenário assinado por Hélio Oiticica, Gal Costa apresentou no Rio de Janeiro (Teatro Opinião) e em São Paulo (Teatro Vereda) o espetáculo Deixa sangrar, baseado no LP Legal (1970). (Reprodução / Acervo Gal Costa)

Em entrevista publicada n’O Pasquim de 6 de agosto de 1970, o poeta e compositor José Carlos Capinam apontava a crise generalizada que via alcançar a música popular no Brasil. Dava como exemplo Gal Costa que, nas suas palavras, enfrentava dificuldade para montar repertório para o LP que estava gravando por “não encontrar músicas que estejam perto da coisa que ela quer fazer”.

E o que queria Gal naquele ano? Setenta começou com a cantora dando um tempo em Londres, ao lado dos exilados Caetano e Gil. Na Europa, pensou no terceiro disco-solo que faria ao voltar: tinha que ser diferente dos dois do ano anterior, o novo traria mais gêneros musicais para que a musa tropicalista pudesse mostrar os diversos matizes de sua voz cristalina por meio do canto gutural roqueiro, da suavidade bossanovista, ou em ritmo de baião, blues, frevo e até calipso. No retorno ao Brasil, Gal trouxe na mala uma inédita de cada baiano, e as lançou em compacto simples. Com as canções “Mini-mistério” (de Gilberto Gil) e “London, London” (de Caetano Veloso), o disquinho prenunciava o lançamento do álbum Legal.
 


Além de temas de Gil e Caetano, o repertório de Legal conta com canções de Jards Macalé, Duda Machado, Geraldo Pereira, Zé Dantas, Roberto e Erasmo Carlos. A parceria “Roberto/Erasmo” abre o disco promovendo o feliz encontro entre os dois arranjadores responsáveis pela massa sonora pós-tropicalista característica do álbum. “Eu sou terrível” combina base do guitarrista Lanny Gordin com arranjo de metais escrito por Chiquinho de Moraes.

A notável presença de Jards Macalé em Legal traduz-se em arranjos de base escritos com Lanny e nas três faixas com suas composições: duas parcerias com Duda – “Hotel das estrelas” e “The archaic lonely star blues” – e a tríplice colaboração que incluiu a própria Gal. No período em que gravavam, a cantora reuniu-se com Macalé e Lanny numa roda de violão em sua casa. Brincando, o trio compôs “Love, try and die”. Para a gravação, contaram com coro arregimentado nos corredores do estúdio, um quarteto vocal composto por Jards Macalé, Tim Maia, Erasmo Carlos e Nana Caymmi.

Porta-voz local do tropicalismo exilado, em Legal, Gal Costa lançou duas de Caetano Veloso e duas de Gilberto Gil. Além das já citadas faixas do compacto, estão no repertório o frevo “Deixa sangrar”, título que Caetano, por deglutição modernista, cunhou traduzindo o “Let it bleed” de Rolling Stones, e “Língua do P”, tema em que Gil encarou o desafio, sem precedentes, de escrever uma letra no antigo idioma cifrado e lúdico. 
 


Legal chega perto da experimentação dos trabalhos anteriores de Gal Costa justamente na faixa que abriga a segunda composição mais antiga do repertório. Em “Acauã”, baião de Zé Dantas lançado em 1952, há espaço para vocalizações ousadas com acompanhamento do trio poderoso liderado pelo guitarrista Lanny. Composto em 1944 por Geraldo Pereira, o samba “Falsa baiana” fecha o disco com um tributo a João Gilberto. Cantando a introdução de “Meditação”, Gal reproduz o vocalise de João para este clássico de Tom Jobim e Newton Mendonça no início da última faixa.
 


Como se não bastasse tanto conteúdo, Legal tem uma das mais belas capas da discografia brasileira. Assinada pelo artista plástico Hélio Oiticica, retrata a cantora com cabeleira formada por colagem de fotos em preto e branco, um visual próprio da fase conhecida como desbunde da qual participou ativamente o colunista José Simão. Ativamente é modo de dizer. Convidado do programa Os dois lados do disco, da Rádio Cultura, para comentar Legal, Simão declarou que no começo daquela década não fazia nada, só fazia a cabeça: batia ponto nas dunas da Gal, vulgo dunas do barato, em Ipanema, bolava capítulos de seu livro Folias brejeiras, aplaudia o pôr-do-sol e, à noite, em caravana, ocupava cadeira do Teatro Tereza Raquel para assistir ao Gal a todo vapor. Mas isso já é papo para 1971.
 

 

 

O cmais+ é e reúne os canais TV Cultura, UnivespTV, MultiCultura, TV Rá-Tim-Bum! e as rádios Cultura Brasil e Cultura FM.

Visite o cmais+ e navegue por nossos conteúdos.