Orós, um disco do Nordeste para o mundo

Quarto LP de carreira do cantor e compositor Raimundo Fagner contou com arranjos e pianos do gênio albino de Lagoa da Canoa, Hermeto Pascoal.

Vilmar Bittencourt 20/01/11 17:30 - Atualizado em 20/01/11 17:30

Parceria de Hermeto Pascoal e Raimundo Fagner estampada no envelope interno do LP Orós, de 1977. (Reprodução)

Num folheto promocional distribuído no Teatro Municipal de São Paulo em três noites consecutivas de outubro de 1977, o programa com 50 músicas prometia um show longo e rico em repertório. Na frente, a foto avermelhada do protagonista: “Raimundo Fagner exclusivo CBS”. No verso, além da lista musical promissora, uma apresentação intitulada Orós – Fagner. Assinado por Raimundo Fagner Cândido Lopes, o texto não fala do disco. Em suas dezenas de linhas, estão propostas de discussão sobre música brasileira, citações a “valores não corrompidos”, entre eles Hermeto Pascoal, e farpas contra colegas do meio, especialmente Caetano Veloso, com quem mantinha a contenda em seu auge.

A brevíssima temporada de lançamento do álbum Orós em São Paulo chamou atenção pelos números de participantes no palco e de músicas programadas – entre elas “Tigresa”, de Caetano, a última do panfleto. O repertório compreendia canções dos três discos anteriores, temas instrumentais e composições de autores de sua turma e de fora dela. Claro, lá estavam também as oito faixas do quarto LP de Raimundo Fagner, uma colaboração com Hermeto Pascoal.

Orós tem direção de produção de Fagner. Os arranjos e pianos são de Hermeto. A arregimentação exposta na contracapa impressiona: abaixo do título do álbum e do nome do cantor, estão Hermeto, Robertinho (de Recife), Itiberê (Zwarg), Paulinho (Braga), Aleuda, Nivaldo (Ornelas), (Márcio) Montarroyos, Dominguinhos, (Chico) Batera, Serginho, Meireles, Mauro (Senise), Zé Carlos e André (Dequech). Todos, mais cordas, em favor da original sonoridade do álbum que o compositor planejava gravar fora do país até encontrar com o gênio albino de Lagoa da Canoa.

Sobre Orós, à época de seu lançamento, Fagner refutou a ideia que o classificava como um trabalho nordestino. Sem desconsiderar as naturalidades de seus protagonistas, a ambição era de ser “um disco do Nordeste para o mundo”. A opção por Hermeto foi acertada, pois o enfoque moderno e literário das canções do cearense pedia o som universal do alagoano que, naquela década, já havia tocado com Miles Davis e gravado dois álbuns nos Estados Unidos, sendo o mais recente o Missa dos escravos (Slaves Mass – WEA, 1977).

Havia pouco mais de um ano que Fagner assinara com a CBS. Orós era seu segundo lançamento pela nova fábrica, talvez o mais ousado, artística e comercialmente. Porém, dentro da gravadora, já era evidente a capacidade aglutinadora de talentos que o contratado exibiu com brilho e naturalidade. Durante sua permanência na companhia americana, o compositor se fez produtor. Em nove anos, além de gravar mais de uma dezena de álbuns, comandou o selo Epic, pelo qual lançou companheiros como Amelinha, Nonato Luiz, Zé Ramalho e Robertinho de Recife .

O pernambucano Robertinho tem notável atuação em Orós. Além de assumir guitarras fender e portuguesa, violas e cítara, é coautor da faixa que mais tocou no rádio: “Flor da paisagem”, sua parceria com Fausto Nilo.
 


São cinco as composições de Fagner presentes em Orós, duas delas sem parceiros: “Cinza”, que abre o disco embalada por sopros, cordas e base caprichados a emoldurar a voz rascante do compositor, e a faixa-título que encerra tema instrumental em homenagem ao açude e à cidade natal de Raimundo.

Autor com muitos parceiros, Raimundo Fagner não os repete nas três colaborações constantes de Orós. Agregado desde o primeiro disco de Fagner, Brandão divide a autoria de “Esquecimento”. Fausto Nilo e Belchior completam o trio de composição em “Romanza”, canção que esperava gravação desde a estreia em LP em 1973.
 


A terceira parceria faz parte de uma história de desavenças com herdeiros de Cecília Meireles. Dos três poemas de Meireles musicados por Fagner, dois foram retirados dos discos dos quais faziam parte: “Canteiros” (“Quando penso em você / Fecho os olhos de saudade...”) saiu do primeiro álbum Manera fru fru manera e “Motivo” (“...não sou alegre nem sou triste, sou poeta”) foi cortado do quinto disco, Quem viver chorará. O terceiro sobreviveu ao veto e chegou ao CD, pelo menos na edição “Autêntico” que manuseio. Trata-se de “Epigrama no. 9”, uma das faixas mais experimentais de Orós que, por assim ser, é conhecida por poucos.

Das oito faixas de Orós, apenas duas frequentaram programações de rádio. Ao lado de “Flor da paisagem”, lançada pouco antes por Amelinha, “Cebola cortada” quebrou o cerco. Felizmente, pois a gravação da canção de Petrúcio Maia e Clôdo atesta o grande desempenho de Dominguinhos, ao acordeom, deitando e rolando na cama de cordas escritas e regidas por Hermeto. Luxo para todos.
 


Uma canção de Hermeto Pascoal fecha Orós. Com letra, música, piano, arranjo e participação vocal do autor, Fagner dá seu recado final, naquele 1977, por meio de “Fofoca”. Provocativo, Raimundo encerra com versos como “A mentira é passageira / E a verdade é de quem tem”.
 

 

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