A história do Valente

O jipe que nos levaria chegou no horário. Era um carro que passou imune pelos tiros e granadas da Segunda Guerra, mas que sofria com os males do tempo e do clima.

Eduardo Weber 23/08/10 16:00 - Atualizado em 23/08/10 16:00

À esquerda, um jipe Willis, parente distante do caiçara Valente, que se apropria da tecnologia dos veículos de Bedrock, cidade de Fred e Barney, personagens do desenho animado Os Flintstones. (Reprodução)

Tudo aconteceu em junho ou julho de 1992. Num fim de semana frio, garoento e ventoso no litoral sul de São Paulo, lá pelas bandas de Iguape.

O jipe que nos levaria da Barra do Ribeira à ponta da Jureia chegou no horário. Era um carro que passou imune pelos tiros e granadas da Segunda Guerra, mas que sofria com os males do tempo e do clima. Estava em pandarecos.

A carroceria perdeu a cor. Sua camuflagem era a corrosão. No lugar dos farois, o nada. Os pneus, pelo que observei, eram os originais. Tinha volante e câmbio. Tábuas de andaimes de construção manchadas de cimento faziam as vezes do assoalho. Assim também eram os bancos, tanto o dianteiro, como os dois traseiros confeccionados sobre a estrutura das rodas do veículo. Todos sem encosto. Via-se nitidamente a cabeça de cada prego. Muitos entortados. Valente, o jipe, servia para transportar material de construção, mantimentos e gente. Valente, o jipe, era conhecido por todos os moradores da vila, na foz do rio Ribeira, a 20 quilômetros da ponta da Jureia.

Benedito, para todos Benê, era o motorista do Valente. Era um caiçara que se virava como pescador, pedreiro e guia turístico. Simpático, dirigia e falava da região e de seu Valente, por ele mantido e conservado, enquanto rodávamos a 20 por hora a distância idêntica a ser vencida na praia, na hora da vazante, da maré baixa. Eu, sentado no banco de trás, não estava interessado no papo. Recebia o vento, sentia o frio e admirava aquele inacreditável assoalho. Até ouvir um estalo!

O estalo só foi ouvido por mim. Um estalo da mente. A partir daí, meu olhar se fixou na parte abaixo dos pés do nosso amigo caiçara e contador de histórias. Não dirijo, não tinha bebido e não sou chegado aos cogumelos, mas estava catatônico. Por quê?

Porque tinha certeza que ali deveriam existir três pedais: da embreagem, do freio e do acelerador. Como uma criança, olhava para aquele ponto e contava mentalmente: um, dois e... De novo: um, dois e... Não havia o terceiro pedal. Faltava um buraco naquele assoalho. Não era o da embreagem, pois o Valente não era hidramático. Não era o do acelerador, pois esse tinha que estar lá. E o do freio, pode?

No caso do Valente (num novo estalo e compreendi o porquê do nome do jipe), podia. Lá pelas tantas pedi para o Benê que parasse para tirarmos “umas fotos”. Menti. Não estava interessado nas fotos (já tirou foto em dia friorento, garoento e ventoso?). Queria mesmo saber como é que ele pararia o jipe, isso sim!

E como foi fácil... Ele tirou o pé do acelerador, pisou fundo na embreagem, engatou a marcha no ponto morto e aos poucos o glorioso vencedor da Guerra na Europa diminuiu sua velocidade. Quando estava quase parando, Benê, no melhor estilo de Fred Flintstone, tacou a perna pra fora do Valente, lascou o calcanhar no chão, rasgou a areia com o pé até o jipe parar de vez. Era o que tinham imaginado William Hanna e Joseph Barbera nos meus tempos de desenho animado.

A história do Valente ilustra minha opinião sobre a imaginação humana. Até onde ela pode ir? Acredito que, como no caso do Valente, ela não possui freio. Desenvolve-se aceleradamente, ou não. Tem como combustível o nosso conhecimento e a nossa habilidade. O seu destino é transpor obstáculos presentes na trajetória traçada pelo cientista mais brilhante, pela equipe mais competente ou mesmo por aquele cidadão que só consegue entender o dia de ontem. Mas que sempre acreditou no poder da imaginação de uma criança.
 


JOÃO E MARIA

A melodia é uma valsa composta por Sivuca lá pelos anos 1940. Não sei como, mas um dia ela chegou aos ouvidos de Chico Buarque, que escreveu a letra que ele e Nara Leão gravaram no LP Meus amigos são um barato, de Nara Leão, em 1977.

Vale dizer que depois de três décadas perdida e esquecida no fole da sanfona, "João e Maria" se tornou a música mais conhecida de Sivuca.
 

 

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