É só um versinho bem bonitinho

Um dia, encontro o meu sobrinho de oito anos com um ar de preocupação. Ele pensava em um verso bem bonito pra uma menina, também de oito anos.

Eduardo Weber 08/06/10 14:40 - Atualizado em 08/06/10 14:40

O poeta e diplomata Vinicius de Moraes (1913-1980) lançou em 1965 o álbum Vinicius / Caymmi no Zum Zum, LP que registrou \"Minha namorada\", música composta com Carlos Lyra. (Reprodução)

Um dia, encontro o meu sobrinho de oito anos, André, em minha casa, com um ar de preocupação, como só ele sabe ficar. Enquanto sua mãe conversava com minha esposa, ele pensava que pensava em um verso bem bonito pra uma menina, também de oito anos. Perguntei:

– O que você quer escrever?
– Um versinho bem bonitinho com o nome dela.
– De onde ela é?
– Ela é da minha escola.

O meu vinil rodou pra trás. Deu 30 voltas na ponta da agulha. Quando voltou à direção natural, lembrei-me de frases que um garoto de sua idade, no meu tempo, escreveria: “Mariazinha, só você consegue iluminar a minha tardinha”. “Minha vida não vale um giz, sem você, Beatriz”. Não demorou pra cair a ficha. Na sua idade, a minha única preocupação era conquistar uma bola de capotão número três... Mas arrisquei e perguntei:

– Como ela se chama?
– G - E - U - A - S - E - L - E - Y - D - E. É Geuaseleyde, tio!

Você precisava estar ali pra ver e sentir com que segurança ele soletrou e com qual desembaraço pronunciou o nome da menina G E U A S E L E Y D E.

– Tio, se fala com ípsilon.

Viu?! Que namorador ele seria no futuro... Que desenvoltura e tão somente com oito anos de idade. Ao mesmo tempo, que desafio a vencer: o que rimar com G E U A S E L E Y D E?

– E aí, tio?

Pensei em Leonardo Da Vinci: “as mais lindas palavras de amor são ditas no silêncio de um olhar”.

Em Jeanne Moreau: “A idade não nos protege contra o amor. Mas o amor, até certo ponto, protege-nos contra a idade”.

E Carlos Drummond de Andrade: “Quem não tem namorado é alguém que tirou férias remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namoro de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, de saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia”.

– Alguma ideia?

Nada disso valia para vencer o seu desafio que, de tão habilidoso, e apenas num piscar de olhos, tinha transferido, pro tio, a tarefa de escrever um versinho bem bonitinho com o nome da menina que eu nunca tinha visto, não sabia a cor dos olhos, se tinha tranças ou sardas, se usava óculos ou botas Kiker. Mas eu estava mordido, não com ela, mas com os seus pais. Afinal, se os filhos são frutos do amor, que tipo de amor é esse que escolhe o nome de Geuaseleyde para ser a namorada de meu sobrinho? Não só sobrinho, mas também afilhado.

Nessas horas o negócio é recorrer ao dicionário de rimas, pois a única palavra que veio à minha mente era o nome de um político paulista, Calim Eid, com d mudo. A estratégia foi boa, mas o resultado da guerra um desastre. Palavras terminadas em eide, eide com i, só encontrei três: leide, nereide e seide.

Como o nome da Geuaseleyde se fala com ípsilon, devolvi o problema do versinho bonitinho pra conquistar a primeira namorada pro André, pro André.

– Namorada? Eu não quero namorar. É pro dia do amigo. É que nome da Gê caiu pra mim. Só quero acabar logo a lição de casa que a professora mandou, pra jogar Pokémon.

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“Quantas saudades eu tenho
de ti oh flor primorosa
Que em tudo és gentil e meiga
Que em tudo és tão graciosa”.

Esses versos foram escritos num bilhetinho para uma aluna da Escola Afrânio Peixoto, Rio de Janeiro. A data? Oito de novembro de 1922. O bilhete de Vinicius de Moraes, com então nove anos, era endereçado à sua primeira namorada, Maria Cacimira, a Cacy.

Cinquenta e seis anos depois, Cacy reencontra Vinicius de Moraes no espetáculo Tom, Vinicius, Toquinho e Miúcha. O poeta lhe faz uma dedicatória na capa do LP:

“Para Cacy
Primeira namorada – que lindo!
Que maravilha! Que coisa tão carinhosa! Que saudades! Que tudo!
56 anos depois! – e que prolonguem até o infinito
Eu te amo!

Rio, dezembro de 1977” *


Quantos poemas Vinicius publicou para suas muitas e eternas namoradas? Quantas letras ele cantou a embalar casais apaixonados?

Tenho uma predileção por “Minha namorada” **, em parceria com Carlos Lyra. Composta há quase 50 anos, pode soar fora de moda, coisa antiga. É bem possível, mas quem se importa? Afinal, não há coisa mais doce no mundo, do que ouvir versos de amor, mesmo que a eternidade se extingue após o primeiro segundo.
 

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Notas

1) No poema “Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão”, Vinicius confessa que os primeiros versos a Cacy eram, na verdade, um plágio adaptado de escritos poéticos de seu pai:

“... A mim me deste
O primeiro verso à namorada.
Furtei-o
De entre teus papéis: quem sabe onde andará”.*

2) Não consegui escrever aquele versinho bonitinho com o nome da Geuaseleyde, a Gê, que hoje não é mais uma menina.


* Conforme livro Vinicius de Moraes. O poeta da paixão. Uma biografia, de José Castelo (Cia. das Letras, 1994)

** “Minha namorada” (Carlos Lyra / Vinicius de Moraes), com Vinicius de Moraes e Quarteto em Cy, registrado no LP Vinicius/Caymmi no Zum Zum com Quarteto em Cy e conjunto de Oscar Castro Neves (Elenco, 1965)

 

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