Ela não entendeu nada

Ela preferiu ligar o rádio e justamente no programa que eu produzia e que o Serginho Groisman apresentava, o Matéria Prima.

Eduardo Weber 21/06/10 14:57 - Atualizado em 21/06/10 14:57

Detalhe da capa do álbum Jogos de dança, de Edu Lobo. (Naum Alves de Souza)

A culpa foi minha, claro. E de quem mais? Eu deveria saber que um simples jogo com o ouvinte pode causar tremendo mal-estar num lar distante do estúdio. Afinal, não era um dia qualquer. Era uma tarde fria de junho, daqueles dias bons para ficar em casa debaixo do cobertor assistindo Sessão da Tarde e comendo bolinho de chuva. Como eu não pensei na possibilidade dela não gostar da programação da TV? Mais: fazia um frio de lascar, mas não chovia! E tem mais mais: ela preferiu ligar o rádio e justamente no programa que eu produzia e que o Serginho Groisman apresentava.

Já faz tempo. Foi na época do Matéria Prima, programa levado ao ar pela Rádio Cultura entre 1984 e 1986. Tínhamos uma sessão chamada "Momento do Ouvinte Matéria Prima". Às vezes dávamos prêmios. Às vezes pedíamos opiniões sobre assuntos diversos. Outras vezes inventávamos histórias.

Neste dia frio de junho, o programa estava pra lá de morno. Sugeri pro Serginho que colássemos uma música no ar para que o ouvinte fizesse comentários. Não comentários quaisquer. Sobre sentimentos. Sobre memórias. Depois, o ouvinte conversaria com ele por telefone e falaria sobre as sensações sentidas, provocadas pela música. E assim foi feito.

Como tínhamos três linhas telefônicas, cada ouvinte que ligava, atendíamos e colocávamos no ar, todos juntos para falar com o apresentador. Como diria o operador Renato Alvarenga, sensacional! Então toca esta, disse.

Era uma música de Edu Lobo, do espetáculo Jogos de dança, do Ballet Guaíra, de Curitiba. Não demorou, tocou o telefone. O ouvinte se identificou e disse: "Quero participar!". Ficou na escuta. Logo depois, tocou o outro número. O ouvinte se identificou e disse: "Quero participar!". Ficou na escuta. Não demorou e o telefone tocou de novo. Era o terceiro e último ouvinte. Atendi e quem ficou na escuta fui eu.

O jogo rolou somente para dois primeiros. O terceiro, do sexo feminino, não quis participar, mas aproveitou a oportunidade para espinafrar o programa, em especial o quadro "Momento do Ouvinte Matéria Prima". Ela tinha ficado indignada com o quadro. "Que coisa chata! Vocês não tem mais nada pra fazer? Onde já se viu! Eu aqui perdendo o meu tempo com essa baboseira!"

Baboseira? Confesso que não me lembro exatamente de todas as frases que a ouvinte disse. Mas baboseira eu me lembro bem. Fiquei atordoado com a repercussão causada por aquela música de Edu Lobo na ouvinte. Nunca imaginei que isso fosse acontecer. E aconteceu, naquela tarde fria de junho, bem o início do inverno, por volta das quatro horas da tarde. Foi como uma seta venenosa que acertou em cheio seu coração...

Um quarto de século depois, volto ao tema. Ouça "Jogo nº 3" e diga qual a sua sensação. O que a música te lembra? O que ela te provoca? Se preferir, publique o seu comentário no espaço desta coluna. Afinal, estamos novamente em junho, novamente no inverno e, segundo consta, um raio não cai duas vezes no mesmo lugar.
 


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NOTAS

1. Informação de um professor de Comunicação: ”A mensagem é entendida com o código do receptor e não com o código do emissor”.

2. A linha melódica principal do tema foi utilizada no balé O grande circo místico também produzido pelo Ballet Guaíra, em 1982. É a música "Meu namorado", com letra de Chico Buarque.

3. “Jogo nº 3” (Edu Lobo)
Arranjo e orquestração: Edu Lobo
Faixa do álbum Jogos de dança (Som Livre, 1981)

4. “Meu namorado” (Edu Lobo e Chico Buarque)
Interpretação: Simone
Faixa do álbum O grande circo místico (Som Livre, 1982)

 

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