Flavinho, o distraído típico

'O meu pai foi me levar pra escola e me esqueceu na calçada!' Assim como Flavinho, Edmundo, cantado por Elza Soares, é um sujeito distraído demais.

Eduardo Weber 03/07/10 09:01 - Atualizado em 03/07/10 09:01

Outro dia encontrei a Ana Paula, filha de seis anos do meu vizinho do quinto andar, sentada na ponta da guia da calçada, com a mochila da escola nas costas, segurando a cabeça com as duas mãos e com aquele olhar matinal de tédio.

- O que você está fazendo aí?
- O meu pai foi me levar pra escola e me esqueceu na calçada! Estou esperando ele voltar.

Você já ouviu falar no Flavinho? Ele é o pai da Ana Paula. Gente boa. Super correto. Quando você precisa dele, é ponta firme. Lá no prédio, todo mundo gosta do Flavinho, menos o vizinho do 64. É de botar inveja em qualquer cidadão que quer ser popular e admirado pelo bom coração. Só que tem uma coisa: ele é meio distraído.

- Meio não. Ele é um distraído típico, esbravejou certa vez sua esposa, a Mônica.

A reclamação da Mônica tem fundamento na opinião do síndico, o professor João Carlos, vizinho do 12. Inclusive ele é um especialista no assunto. Ontem eu o encontrei na portaria. Não demorou e veio a conversa sobre as distrações do Flavinho e a confusão que ele provocou no sexto andar.

- Veja bem! Não podemos confundir o distraído sistêmico, orgânico, contumaz, com aquele que se distrai pontualmente ou ocasionalmente. Veja bem! Tem muita diferença.

O distraído ocasional, segundo o professor João Carlos, é aquele que por distração bate a cabeça no poste uma vez na vida. O distraído sistêmico também bate a cabeça no poste. Dependendo a idade alcançada, são várias batidas ao longo da vida e mais. Na sua infinita distração, derruba lata de lixo, pisa no rabo do gato, passa a mão da cabeça do pitbull e tromba na moça. Como ele é sistêmico, tromba na moça halterofilista. Voltemos à conversa.

- Veja bem, não é a mesma coisa. O distraído sistêmico é diferente do distraído pontual, explica o prófí Jota Cê (é assim que os meninos do prédio o tratam). - Repare. A Maria... A Maria, minha faxineira, é uma distraída pontual. Ela fica vigiando o leite no fogo. Fica firme com a mão no botão. Daí, aparece o Fubá abanando o rabo. Pronto. Ela esquece o botão, faz um cafuné no quengo do labrador, o leite sobe e suja o fogão. Toda semana é a mesma história. A distração dela é pontual. A causa, o Fubá. A do Flavinho é sistêmica.

O assunto foi tomando corpo, já que na última distração do Flavinho teve até polícia na parada. Pra mim, não teve maldade. É que ele vive no mundo da Lua.

- Nada disso, veja bem, ponderou o prófí.

- Quem vive no mundo da Lua sonha que fez o gol da virada na final da Copa do Mundo. É uma coisa gloriosa. Fica lá sonhando enquanto dirige, mas é só isso. Enquanto ele está no mundo da Lua, não faz bobagem na Terra. O distraído sistêmico faz e muita. Veja bem. É o caso do condômino do 53.

Ele se referia ao Flavinho. Penso até que o distraído típico, nas palavras da Mônica, distraído sistêmico, na opinião de você sabe quem, além de tudo é um tremendo azarado. Porque em razão de sua constante distração, tudo acontece com ele de maneira “sistêmica”.

Num dia do ano passado, por acaso, o vi no ponto de ônibus. Buzinei e lhe dei carona.

- Tudo bem, Flavinho?
- Que nada.
- O que foi?
- Ontem venceu meu seguro. Pensei que era dia 29 e era dia 30. Esqueci de pagar.
- Puxa!
- Pensei. Pago hoje. Fui pro escritório. Pus na gaveta o boleto, o cheque, a carteira, bati e fechei. A chave tava lá dentro. Ficou tudo trancado. Tudo lá fechado.
- Chato!
- Não paguei o seguro, até agora.
- Vai ter multa.
- Acho que não. Sai do escritório e descobri que roubaram meu carro. Não tava na vaga.
- Nossa!
- Mas eu sou prevenido. Já fiz o boletim de ocorrência pela internet.
- E você deu O.K.?
- Precisava?

De distração em distração, o Flavinho levou a vida na boa até a semana passada. Foi quando ele chegou em casa mais cedo, com uma garrafa de vinho e um buquê de flores. Era o aniversário da Mônica, que na verdade já tinha sido. Como estava sem a chave do apê, tocou a campainha e foi dizendo...

- Amor! Sou eu! Você não vai abrir a porta? Tenho uma surpresinha...

- Por distração, o Flavinho apertou o botão errado do elevador, desceu no andar errado, tocou a campainha errada e foi atendido pelo cara errado, o ciumento e desconfiado marido da Neide... Preciso dizer o que aconteceu? O que você acha?

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Não pense que sou exagerado e que está história é conversa mole. A distração provoca acidentes e imortaliza personagens, como é o caso do Edmundo, descrito na gravação de Elza Soares.
 


Trata-se de uma letra bem humorada de Aloysio de Oliveira. Ele a escreveu quando comandava o Bando na Lua nos Estados Unidos, tendo como melodia a obra de Joe Garland e Andy Razaf “In the mood”, tremendo sucesso da orquestra de Glenn Miller.


“Edmundo” foi uma das derradeiras gravações do conjunto Bando da Lua, que se desfez após a morte de Carmen Miranda, em 5 de agosto de 1955.


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FICHA TÉCNICA DAS GRAVAÇÕES

1. “Edmundo” - Elza Soares
Faixa do LP Elsa Soares (baterista Wilson das Neves)
Arranjo: Maestro Nelsinho
Gravadora/Ano: Odeon, 1968

2. “In the mood” - Orquestra de Glenn Miller
Faixa do CD Glenn Miller greatest hits
Arranjo: Joe Garland
Registro original de 1939
Gravadora/Ano: RCA, 1996

3. “Edmundo” – Bando da Lua
Faixa do LP Bando da Lua nos E.U.A.
Registro original de 1954
Gravadora/Ano: MCA Records, 1975

 

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