O que eu faço com isso?

A Lizinha já passou por tudo nos aeroportos do Brasil. Aguenta tudo, até mesmo suco de laranja sem gelo servido em Boings e Embraeres.

Eduardo Weber 23/07/10 10:57 - Atualizado em 23/07/10 10:57

Detalhe do Aeroporto Paris-Charles de Gaulle. (Reprodução)

Quem me pegou pra conversa antes da minha vinda ao trabalho foi o Mané, meu porteiro.

- O senhor leu o jornal? Aumentou em trinta por cento o número de passageiros nos voos domésticos.

Não há nenhum demérito em tratar o Sr. Manoel dos Santos por Mané. Lá no prédio todo mundo chama-o assim. Há um quarto de século. E a explicação é lógica: temos ainda o Manezinho, que faz as folgas, e Seu Manoel, vigia da noite. Mas voltamos ao assunto.

- Também não é pra menos. Nasce mais gente do que morre. Então, tem que ter mais gente voando mesmo, não é colega?!

Esse é o seu bordão: não é colega?! O Mané nunca embarcou em avião e não tem motivo para embarcar. Como ele mesmo diz, “Só cheguei perto de um, a Madalena, que nunca deu a mínima pra mim”.
 


Dei bom dia, me despedi, ele abriu o portão e lá fui pegar o ônibus com tempo de sobra para pensar no assunto.

Os jornais da semana passada exploraram a notícia e fizeram projeções assombrosas a respeito da situação dos nossos aeroportos. Não a de agora, mas daqui a quatro anos quando acontece o reinado da bola nessa grande república ao sul do Equador.

Foi uma enxurrada de números e de gráficos. Ao ficar a par de tudo, você chega à conclusão que o aumento de voos e de passageiros por aqui deverá ser muito maior do que qualquer estatística indica. Mas põe maior nisso. Muito mais do que as projeções dos mais otimistas. E o que será que vai acontecer se o governo não tomar uma providência com urgência? O que o governo está esperando? Só faltam quatro anos para a Copa?

Essas perguntas sobre o que vai acontecer daqui a quatro anos nos aeroportos brasileiros não são minhas. São da minha colega Evangeliza que assina Madeiro Branco, que leu a mesma notícia lida pelo Mané e estava pronta para ter um surto antecipado.

Evangeliza é especialista em construção civil. Viaja por aí visitando feiras, congressos e novidades desse ramo da engenharia que tem muito mais tecnologia embutida do que ela nos apresenta em forma de tijolo e reboco.

A Lizinha (é assim que a gente a trata) já passou por tudo nos aeroportos do Brasil. Aguenta tudo, até mesmo suco de laranja sem gelo e amendoim sem casca servidos em nossos Boings, Airbuses e Embraeres. Só não aguenta estresse em saguão de aeroporto. Para melhor explicar, vou repetir suas palavras:

- Estresse eu passo em aeroporto no exterior, porque, nos daqui, não é estresse, é show de horror, querido...

Ela chegou de Paris há dias. Foi visitar uma grande feira de construção civil e, um dia antes do regresso, aproveitou para fazer umas comprinhas básicas na Avenue Champs-Elysée, onde encontrou o que procurava: um kit de manicure super incrementado para dar de presente à sua cunhada, encomenda do marido que ficou no Brasil mergulhado no pó de canteiros de obras.

O que importa nessa história não é o dinheiro gasto na Avenue Champs-Elysée, a notícia do Mané, o futuro dos nossos aeroportos ou as novidades da construção civil. O que importa mesmo é o que aconteceu com a Lizinha na hora de tomar o voo de volta para Cumbica.
 


Passagem e passaporte na mão. Malas na balança. A comissária sem perder a fleuma disse em bom francês:

- Ne pouvez pas, madame.

Ainda bem que a Lizinha não se abala com não. Desde que a conheço, “não” é uma palavra que ela tira de letra. Com a mesma fleuma da funcionária francesa, rebateu com seu francês perfeito:

- Não pode por quê? O limite é de 40 quilos. E eu tenho 40 quilos de bagagem.
- Non, ne pouvez pas, madame. O problema não está no total a ser transportado por nosso voo. Mas na sua distribuição. Tem 30 quilos numa mala e 10 na outra.
- E daí?
- Daí que é preciso, necessariamente, distribuir melhor o peso entre as malas, madame.


Você sabia disso? Vivo e aprendo. Se a Lizinha tivesse colocado 23 quilos numa mala e 17 na outra, podia. Mas como tinha 30 na maior e 10 na menor (por sinal muito menor), nada feito.

A discussão foi longa e como não havia jeito, jeito se deu. Lá foi a Lizinha de volta para o meio do saguão do Charles de Gaulle distribuir o que parecia impossível. Resignada, abriu a bolsa, pegou a chave dos cadeados e quando foi abri-los, deu-se por conta da burrada que tinha feito. Gastou uma nota preta envelopando as duas malas com aquele plástico que aqui se chama de protect bag, e lá também.

Furiosa (soltou para o saguão ouvir aquele arghhhhhhhhh), arrancou quase a dentes o protect bag da mala menor. Quando abriu, abriu um sorriso de vingança. Despedaçou o pacote do presente à cunhada, abriu o kit, sacou a tesourinha de unha de puro aço alemão, rasgou com fúria o protect bag da mala maior e se pôs na árdua tarefa de arrumar duas malas no meio do saguão do Charles de Gaulle, com gente passando e bisbilhotando a bagagem alheia. Amassa daqui, prensa dali, recolheu o que restou pelo saguão enfiou na bolsa e partiu pra balança.

- Voilá! Agora sim, 22 quilos na maior e 17 e meio na menor. Bon voyage, madame!

Foi um alívio pra Lizinha. Contente, feliz da vida com o problema resolvido, saboreou o melhor chocolate quente que o euro pode comprar e de salto alto foi pra sala de embarque como nada fosse. E não é que o alarme disparou!

- O que foi? É comigo? É assim que a Lizinha desconversa em bom francês graças às aulas na Alliance Française.

O agente arregalou o olho, sorriu, desferiu três muxoxos e disse calmamente num francês de matar.

- Pardon, madame! Não é permitido ao passageiro embarcar com material cortante e/ou perfurante na bolsa. O que a madame pensa em fazer com isso?

Pois é. Na pressa, a Lizinha deixou a tesourinha de unha de puro aço alemão na bolsa. Da bolsa a retirou para depositar na urna do Charles de Gaulle, igualzinha àquela colocada na porta de entrada da sala de embarque do aeroporto de Congonhas de São Paulo, onde deixei e vi pela última vez meu canivete suíço.

- Voilá! Bon voyage, madame!, disse o agente com quase dois metros de altura.
 


Durante o vôo, Lizinha não dormiu. Perguntava para si: o que eu faço com o kit de manicure sem a tesourinha?

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As ilustrações musicais do texto nos remetem ao tempo em que viajar de avião era chique no último, como se diz hoje por aí. Tinha um amigo que morava no bairro das Perdizes, em São Paulo, que, quando chovia, ficava com um mau humor terrível. Para curar, pegava o ônibus Aeroporto, descia em Congonhas, tomava um café, pegava o ônibus de volta e pronto. Você já pensou em fazer isso hoje? A linha ainda existe.

Você tem alguma história sobre o assunto, como é o caso da Lizinha? Se tem, deixe registrada na página.

Até a próxima.

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MÚSICAS

Do LP São Paulo 1554 Hoje
Joelho de Porco
Crazi, 1976

“Aeroporto de Congonhas” (Tico Terpins)
“Boeing 723897” (Tico Terpins)
 

Do LP Tubarões voadores
Arrigo Barnabé
Barclay, 1984

“A Europa curvou-se ante o Brasil”
(Carlos Rennó, Arrigo Barnabé e Bozzo Baretti) - Part. Paulinho da Viola

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