Tem fiscal na quadrilha

Em defesa da festa junina da escola, a Madre Superiora sapecou alvarás, comprovantes e outras licenças. Com Inezita Barroso e Mário Zan.

Eduardo Weber 17/06/10 08:31 - Atualizado em 17/06/10 08:31

Foi um temporal. Batendo o pé, a coordenadora de ensino percorreu o longo corredor do colégio e quase pôs abaixo a porta da secretaria, não tirando do sério a Madre Superiora envolvida em papéis.

- O que foi irmã?
- O fiscal está lá no pátio!

Quem me contou a história foi a Lourdes, professora de Educação Artística que mora no meu prédio. Como ela é meio exagerada, só fiquei de ouvido.

- Weber, você não sabe a cara da religiosa quando ouviu a palavra “fiscal”! A Madre, que dá aula de Religião e cuida da administração da escola, sapecou alvarás, comprovantes, habite-se e outras licenças mais e voou pelo mesmo corredor provocando um movimento tão grande em sua batina, que a coordenadora achou por bem ficar a quatro passos de distância daquela que tinha como sua mais sagrada virtude, a ponderação.

E a Lourdes continuou explicando e foi além...

- Desceu os degraus como enxurrada em dia de temporal. Seus olhos estavam vidrados nos comprovantes pra mostrar ao tal fiscal. Ela não respirava. O ar de ponderada, escafedeu-se. Quando chegou lá no pátio, foi logo dizendo sem se importar com o balanço da batina:

- Está tudo aqui, carimbo, licença, contrato, permissão, juízo... Eu te conheço?
- Armando Bonilha. Prazer, Madre. Meu crachá.

Vou simplificar a história, porque o lero-lero da Lourdes nem tatu aguenta. Armando Bonilha era fiscal de direito de autoral. Soube, não sei por quem, que a escola organizava uma festa junina e estava lá para defender interesses artísticos dos que animam a festa: os compositores.

- Mas então pra que a trena?

Fiquei tão curioso, quanto a Madre. Pra que a trena? Aliás, a Lourdes me disse que o tal fiscal, o Armando Bonilha, tinha uma tão grande, que mais parecia a de agrimensor de companhia de estrada de rodagem.

- A trena é pra medir o pátio onde será a festa. Só isso.

E o Armando Bonilha mediu tudo. Tudo mesmo. Até os degraus da escada e de um pequeno palco, lugar de apresentação de teatro de bonecos, que por sinal não seria usado no dia. Ele mostrou o resultado da medição para a Madre. O da área total do pátio e o do boleto que deveria ser pago no banco em nome dos compositores.

Foi aí então que a Madre entendeu o significado desse Pai Nosso. Quanto maior a área, mais gente. Quanto mais gente, maior o boleto. Certo? Claro que sim.

A Lourdes me disse que o boleto não era assim uma fortuna e que a Madre sempre seguiu as normas religiosas e fiscais. Ela, até então, nunca tinha imaginado que, para fazer uma festinha junina de colégio em nome da cultura brasileira, teria que pagar! Pois é. Ao menos, era para o bem dos compositores, pensou a Madre.

Mas a Lourdes me falou que a Madre tentou um descontinho em nome de Deus. Disse para o Armando Bonilha que era uma festinha simples, que a música era de um disco, disco que ela mesma tinha comprado com seu próprio dinheiro.

Ao ouvir tal justificativa, o Bonilha se apressou. Pegou o boleto, rasgou e foi dizendo:

- Então a música da festa é de disco?
- É sim
- Já que não tem músico tocando, além do direito do compositor, tem também o direito do intérprete. Vai ficar um pouquinho mais caro.

A Lourdes me disse que a Madre ficou muda. Disse também que a Madre achou justo pagar o boleto em nome de compositores e agora dos intérpretes e que iria rezar um terço para que os tais direitos chegassem ao bolso dos compositores e intérpretes da festinha junina.

Depois de dar a benção para o Armando Bonilha e se despedir, voltou com mais um papel até a sua sala e não se deu por rogada.

E porque eu estou contanto essa história?

Acontece que a Lourdes, como professora de Educação Artística, teve a incumbência de ensaiar a quadrilha, sob a supervisão da Madre, agora mais ligada na festa do que antes. E a Lourdes ficou tão feliz como resultado do ensaio, que me vendeu uns convites para a tal festinha junina. E lá fui eu.

Comi pipoca, tomei vinho quente e arrisquei alguma coisa na barraca da pescaria. Vi por lá o Armando Bonilha comendo um churrasquinho. A Lourdes me disse que ele foi convidado. Isso eu não sei.

E chegou o grande momento da festa: a quadrilha. Foi uma quadrilha como tantas outras. Com erros e acertos. Com a graça de uns e a timidez de outros. E algumas improvisações. Mas o que me chamou a atenção foi a cara do Armando Bonilha quando Lourdes gritou:

- Olha a coooobrrrraaaa...

E todos responderam olhando para o convidado, o Armando Bonilha que nessa hora estava tomando um quentão.

- Ih! Cadê?

O Armando Bonilha ficou meio desconfiado, e tragou mais um gole.


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Sou da cidade. Sempre morei em São Paulo e festa junina que se preste tem dente pintado, chapéu de palha em frangalhos e roupa remendada pra quem dança a quadrilha, com ou sem boleto.

Em 1998 entrevistei Inezita Barroso para o documentário Noites de junho, sobre as tradições juninas na cidade. Fiquei surpreso quando ela revelou que essa história de colocar remendo na roupa pra dançar quadrilha é uma distorção. Na roça a história é bem diferente. O camponês vai muito bem vestido para as festas dos santos de junho e que esse negócio de se fantasiar de caipira mal vestido é puro preconceito, que perdura até hoje, até mesmo nas escolas bem intencionadas.

Vale ouvir o que disse Inezita Barroso sobre a origem da quadrilha, suas modificações ao longo dos anos e lembrar a dança com marcação da própria cantora, ao som da sanfona de Mário Zan, pois quando o assunto é cultura popular, com Inezita Barroso não tem deslize. Como se dizia antigamente: ela mata a cobra e mostra o pau.


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1) Trecho documentário Noites de junho
Com depoimento de Inezita Barroso
Rádio Cultura Brasil, 1998
 


2) “Quadrilha verdadeira n. 1” (Mário Zan)
Tocada por Mário Zan
Marcada por Inezita Barroso
Som Livre, 1991

 

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