O Reinado da Lua

Publicação decisiva para a arte popular do Nordeste celebra imagens e depoimentos históricos: “Caboclo tem as invenções do seu juízo e só faz o que quer”.

Julio de Paula 03/12/10 13:18 - Atualizado em 03/12/10 13:18

Ana das Carrancas, das margens do São Francisco: “Pra minha arte parece que estou nascendo agora”. À direita, o artesão Louco: “Não sei repetir nenhum trabalho, mesmo que seja com uma foto na frente. Eu sigo mais a madeira”. (Maria do Carmo Buarque de Hollanda)

Com proposta de documentar e apresentar a realidade (singular) de artistas populares, Sílvia Rodrigues Coimbra, Flávia Martins e Maria Letícia Duarte, saíram a campo entre 1975 e 1980 pelos estados da Bahia, Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba, Piauí, Maranhão, Ceará e Alagoas. Como resultado da pesquisa, uma obra seminal: O Reinado da Lua – Escultores populares do Nordeste, texto de referência que ganha sua quarta edição após 30 anos da publicação original.
 


Para embalar a leitura deste Reinado da Lua, nada mais oportuno que as pesquisas do Quinteto Armorial, conjunto pernambucano contemporâneo às investidas ao campo dos escultores.

Arte e ofício encontram-se no mesmo plano ao escultor popular, que desenvolve seu trabalho em “condições de penúria e escassez, vivendo no limiar da sobrevivência”, diz a apresentação. “Este é um livro realizado em conjunto com 109 escultores nordestinos”, advertem as autoras. Em prefácio à quarta edição, 30 anos após seu lançamento original, Paulo Sergio Duarte reforça a importância da publicação, marco na abordagem da arte popular brasileira. Também aponta para o abismo que continua existindo entre os mundos da arte popular e do “sistema da arte”. O crítico lança um desafio ao teórico contemporâneo: reconstruir conceitos e retraçar fronteiras para assim, “realizar a leitura das obras lado a lado, independente de sua origem social e de sua inscrição no mundo institucionalizado da história da arte”, escreve.

Relatos “lunáticos”

“Nesse trabalho eu faço tudo sozinho. Uso arame, tábuas, caibros, prego, cipó, cabelo, cordão, estopa, pano mais fino, tinta... Esculturo primeiro e depois começo a cobrir”, assim descreve seu ofício Capitão Pereira, o mais antigo animador de bumba-meu-boi de Pernambuco, em 1977. Pereira integra o singular grupo de “escultor popular brincante”, figura que se divide entre o artesão e o animador de folguedo. Já Mestre Vitalino encabeça uma rede de artistas em Caruaru (PE) e transforma o Alto do Moura num pólo de criação em cerâmica. “Vitalino foi o mestre”, relata Zé Rodrigues. “Eu saio fora, gosto de olhar uma coisa qualquer pelo Alto do Moura. Olhando qualquer coisa pela rua, eu faço”, diz.

Datam do final do século 19, as primeiras notícias das assustadoras carrancas do Rio São Francisco. A origem das esculturas é controversa, mas a versão mais divulgada diz respeito a uma função protetora. “A componente mágica do rio funde-se com a vida daqueles sertanejos”, diz o texto do livro, que mapeou cinco escultores que sobreviviam deste trabalho.

“Eu sei muita história. Sou mais velho que Matusalém”, adverte Nhô Caboclo, o mais emblemático artista da publicação. “Eu não tenho o poder de possuir o dom, sou perverso, mas tenho corgo, que é a pessoa fechar os olhos e, o que vier no sentido, fazer”, diz. “Eu não imito ninguém. Tudo o que eu faço é carcatura minha mesmo, as carcaturas que eu quero fazer.” 

Já se notou aqui que a maior qualidade deste mapa emblemático é perceber a obra de arte popular a partir da perspectiva de seus artistas e seu entorno. Além das transcrições dos depoimentos (muito bem editados) e do texto das pesquisadoras propriamente dito, é especial o modo com que os escultores são fotografados e apresentados em seu ambiente. Mérito maior dos fotógrafos Maria do Carmo Buarque de Hollanda e Dalvino Troccoli França (os principais da publicação), quando seus filmes p&b conseguem registrar a enorme semelhança física entre escultor e escultura. Enquanto revemos essas imagens e relatos brilhantes, remoemos a pergunta que não quer calar: por onde estariam hoje estes artistas e suas obras? Suspensos, ficamos com as palavras de Drummond, por ocasião do lançamento da primeira edição: “A Lua reina sobre os artistas que nasceram artistas, não precisaram academiar. A Lua os inspira e fataliza para a criação. Um deles se chama Louco, outro Maluco Filho, um terceiro é Doidão. Mas todos operam sob a luz que vem da Lua ou que brota do interior deles mesmos”. O poeta itabirano completa: “Um deles, Nhô Caboclo, tem esta frase à la Guimarães Rosa: Disso você não entende não, isso é coisa do Reinado da Lua”.

Reinado da Lua tem a quarta edição realizada pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. Lançamento em São Paulo (Livraria da Vila) em 4 de dezembro, sábado. No Rio, em 18 de dezembro de 2010 (acompanhe o miniblog - link ao lado).

 

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